Lockdown na Índia: como a quarentena matou mais de 300 pessoas que não tinham o coronavírus

No 62º dia do lockdown do coronavírus na Índia, um menino tenta acordar sua mãe, deitada em uma plataforma de trem na estação de Muzaffarpur, no Estado de Bihar, no leste do país.

Os anúncios de chegada e partida de trens continuam soando nos alto-falantes da estação.

Sem entender que sua mãe está morta, o filho caminha até o corpo e puxa o cobertor colocado sobre ela, colocando-o sobre sua própria cabeça.

Dois dias depois deste episódio, essas imagens começaram a se difundir pelas mídias sociais.

A mulher morta foi identificada. Trata-se de Arbina Khatoon, uma trabalhadora de 23 anos na cidade de Ahmedabad. Ela estava viajando com seus dois filhos e alguns parentes em um trem especial para trabalhadores migrantes, em direção a sua cidade natal, Bihar, em uma jornada de 1,8 mil quilômetros.

“Ela morreu de forma repentina no trem”, disse seu cunhado Wazir à BBC Hindi, serviço em língua hindi da BBC.

Eles só tinham comido uma refeição desde o começo de sua jornada, ele conta, e alguns biscoitos e batatinhas.

“A água era quente demais para se beber”, conta Wazir.

De acordo com a imprensa local, ela morreu de fome e desidratação, como muitos trabalhadores migrantes que faleceram durante o lockdown decretado em função do coronavírus. As autoridades locais, no entanto, disseram que ela morreu devido a algum outro problema de saúde pré-existente.

Arbina Khatoon é uma entre mais de 300 trabalhadores migrantes que morreram desde que o lockdown foi decretado na Índia, no dia 25 de março. As estatísticas vão até o dia 26 de maio. A maioria das vítimas estava tentando voltar para suas cidades natais após perderem seus empregos praticamente do dia para noite.

Caminhando sob o sol

A paisagem urbana da Índia está cheia de trabalhadores informais que dependem de salários pagos diariamente para sua sobrevivência. Eles são a base da economia das metrópoles — responsáveis por construir casas, cozinhar, servir e entregar comidas, cortar cabelos, fabricar automóveis, limpar banheiros e entregar jornais.

A maior parte dos 100 milhões de trabalhadores informais está tentando fugir da pobreza extrema. Muitos moram em péssimas condições e sonham com mobilidade social.

Mas milhares deles estão sem empregos ou qualquer outra forma de renda desde o começo do lockdown. Eles passaram a depender de doações de comida por parte do governo ou de instituições de caridade. Alguns agora precisam mendigar. Quem tentava voltar para casa não tinha acesso a trens ou ônibus. Rapidamente eles se transformaram praticamente em refugiados

BBC

Homens, mulheres e crianças começaram suas jornadas a pé. A maioria dizia estar sem dinheiro e com medo de passar fome.

Eles traziam consigo seus parcos pertences em sacos — geralmente comida, água e roupas. Os jovens andavam com mochilas. Quando as crianças ficavam exaustas de caminhar, os pais as carregavam nos ombros.

Eles caminhavam sob o sol e sob as estrelas, enfrentando fome e exaustão, mas motivados por uma espécie de vontade coletiva de chegar em casa. Nas suas cidades natais, eles teriam um mínimo de comida e o conforto da presença de seus familiares.

‘Pelo menos verei meus filhos’

Lallu Ram Yadav, de 55 anos, era um desses refugiados do lockdown. Ele trabalhava como segurança em Mumbai em turnos de 12 horas por dia e seis dias por semana.

Ele costumava se encontrar todo domingo com seu primo, Ajay Kumar, para falar sobre suas memórias da terra natal que havia deixado na década anterior, em busca de uma vida melhor na cidade grande. Ele enviava dinheiro para sua mulher e seus seis filhos.

Mas todo esse trabalho duro foi por água abaixo quando o lockdown começou. A poupança que ele e Ajay tinham logo se esvaiu.

Lallu Ram telefonou para seus familiares e informou que estaria voltando — pelo menos assim, imaginou que poderia voltar a ficar com seus filhos. Seria preciso viajar 1,4 mil quilômetros até o distrito de Allahabad, no Estado de Uttar Pradesh.

Os caminhoneiros cobravam caro demais pela carona. Então os dois resolveram fazer malas pequenas e começar a jornada a pé, na companhia de quatro amigos.

Em 48 horas, eles conseguiram caminhar 400 quilômetros, com a ajuda de algumas caronas. Mas a travessia se provou mais difícil do que haviam previsto.

“Estava quente demais e logo nós ficávamos cansados”, disse Ajay. “Os sapatos de couro que usávamos eram extremamente desconfortáveis.”

Eles ficaram com bolhas nos pés depois de caminhar por um dia inteiro. Mas não tinham mais a opção de desistir.

Uma noite, Lallu Ram começou a ter dificuldades para respirar. Quando chegaram ao Estado de Madhya Pradesh, ainda tinham um longo caminho pela frente, mas decidiram parar para descansar.

Lallu Ram nunca mais acordou. Os amigos que o levaram para o hospital contam que ele morreu de parada cardíaca, provavelmente desencadeada por exaustão.

“O único ganha-pão da família se foi”, disse Ajay. “Ninguém nos ajudou. Meu primo não precisava ter morrido, mas ele teve de escolher entre a fome e uma longa viagem.”

Lallu Ram não conseguiu cumprir sua promessa de passar mais tempo com seus filhos.

“Nós, os pobres, geralmente precisamos escolher a melhor opção, entre várias péssimas”, diz Ajay. “Não deu certo para meu primo dessa vez. Raramente dá certo para pobres como ele.”

Um destino semelhante foi encontrado por 16 trabalhadores exaustos no Estado de Maharashtra. Depois de 36 quilômetros caminhando, eles pegaram no sono em trilhos de trem. Quando o trem passou, atropelou todos.

A imprensa local noticiou que os trabalhadores imaginaram que não haveria trens passando por aqueles trilhos devido ao lockdown. Algumas imagens compartilhadas nas mídias sociais mostrava pedaços de roti, uma espécie de pão indiano, jogados no canto da ferrovia.

‘Queria nunca ter começado esta viagem’

A maioria dos trabalhadores migrantes que morreram esteve envolvida em algum tipo de acidente de trânsito. É o caso de Sanju Yadav.

Ela chegou em Mumbai, a capital financeira da Índia, na década passada, com seu marido Rajan e seus dois filhos, Nitin e Nandini. Eles tinham poucos pertences, mas muitos sonhos. A esperança de Sanju era de que seus filhos prosperassem na cidade.

O trabalho duro dos dois parecia estar compensando. Rajan usou sua poupança e um empréstimo para comprar um tuk-tuk, um veículo triciclo típico da Índia e de outros países asiáticos.

Mas então veio o coronavírus.

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